sobre Goffredo Telles Junior

Os 35 anos da Carta aos Brasileiros

Em 2012, celebra-se 35 anos da leitura inesquecível da Carta aos Brasileiros, pelo Professor Goffredo da Silva Telles Junior, no Território Livre da Academia de Direito de São Paulo. Um acontecimento marcado por coragem, altivez e sabedoria, concretizado nas palavras do eterno Mestre.

Acompanhe o relato de José Carlos Dias, que narra o nascedouro do crucial documento, em depoimento constante na obra "Arcadas no tempo da ditadura".

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José Carlos Dias - Turma de 1963

1977, ditadura no Brasil, em todos nós o desaponto. 150 anos da nossa Faculdade e comemorar o quê? Buzaid era o diretor, o grande jurista que tendo se tornado Ministro da Justiça do Governo Médici, por alguns dias e na visão de alguns poucos, gerou uma expectativa, uma esperança, afinal, sua formação jurídica iria se opor às brutalidades que os militares praticavam. Iria dar um basta à violência às pessoas, aos presos políticos.

Mas qual o quê! A vergonha que experimentávamos era por antever a festa oficial dos 150 anos da nossa Academia, lá no salão nobre, com as becas conservadoras e conformadas. Houve um dia, não sei ao certo, parece-me que no correr do mês de maio, Flávio Bierrembach veio ao meu escritório no Edifícil Itália, estava acompanhado do Almino Afonso, nosso Ministro e meu cliente (que surpresa boa), a quem visitara no seu exílio argentino. Descemos ao restaurante do Circolo Italiano para almoçarmos. E no desabafo dos três amigos, o sentimento de frustração com os 150 anos da Faculdade, que seriam vergonhosamente comemorados numa sessão pública, no salão nobre, com discursos recheados de chavões bacharelescos e nada mais. Foi aí que surgiu, amadurecendo no papo inconformado dos três amigos, a ideia de se criar um acontecimento próprio, um ato de subversão dentro da própria faculdade, comemorando-a e dando um grito de guerra, bem à maneira de sua tradição revolucionária, como na luta abolicionista, como pela Proclamação da República, e em 32, sempre na recordação de que mais vale deixar a folha dobrada enquanto se vai morrer do que lê-la e viver por aí saboreando vantagens.

Teríamos que marcar a data com um gesto e um papel, onde estivesse escrito que papel deveríamos desempenhar em respeito ao nosso compromisso com a velha faculdade. Sim, teríamos que grafar o instante com um documento.

Um documento! Um documento que tivesse o sentido de denúncia, que falasse de nossa inconformidade com as violências fabricadas pela ditadura. Um documento que tivesse a força de um laudo necroscópico atestando a falência da democracia, que revelasse todos os traumatismos sofridos, golpeados, como os sinais vitais se extinguiram. Mas um laudo que pudesse ter um sentido de esperança, de ressurreição, de nascimento de uma nova ordem calcada nos velhos princípios da liberdade, da justiça, da igualdade. Afinal, nada de novo para quem nasceu aprendendo a amar os valores acadêmicos que nos nutriram no velho Largo.

Quantas mãos seriam encarregadas de dissecar o corpo e redigir o laudo? E nós nos propúnhamos a tanto. Mas não, éramos poucos, éramos três e éramos muitos. Teria que ser um, um só, só ele, o Goffredo!

Fomos nos aquecendo com a ideia e com o vinho com que disfarçávamos o friozinho de maio. E nos pusemos em marcha.

Um telefonema e pronto. Lá estávamos com o velho mestre, ao lado da querida Maria Eugênia, minha caloura, colega de turma de Flávio. Expusemos nosso plano, nossa ideia ganhando corpo e alma. Haveria de ser um ato de grandeza, no pátio da Faculdade, reunindo muita gente, com uma grande divulgação. Goffredo cresceu, seus olhos emocionados nos faziam ver o quanto estava tomado de entusiasmo, estávamos diante do Goffredo de sempre. Sim, aceitava a tarefa, era um desafio irrecusável, mas impunha, no entanto, uma condição, queria que os outros lessem o texto, discutissem com ele. E foi assim que outras reuniões aconteceram, tertúlias encantadoras com pouquíssimas sugestões apresentadas e logo nos pusemos a colher assinaturas de pessoas que mantinham posições destacadas no mundo do Direito. Alguns assinaram com entusiasmo, outros tartamudearam, enrolaram, adiaram o gesto, ficaram para trás.

Em agosto de 1977, o pátio repleto de gente, Goffredo carregado em triunfo, foi conduzido para dentro do pátio e leu, comovido, a Carta aos Brasileiros. A repercussão foi maior do que havíamos cogitado. A mídia deu enorme cobertura. Pode-se dizer que a Carta aos Brasileiros foi um marco na história da redemocratização, muitos que segredavam cabisbaixos, passaram a dizer o que temiam pensar. Outros que evitaram assinar procuraram deixar seus nomes gravados em abono da Carta. Ótimo. A nossa Academia foi mais uma vez honrada em sua história de 150 anos. Lá dentro, a festa, na clandestina mediocridade dos atos oficiais, cheirou a mofo azedo, enquanto no pátio tudo voltou a ser como nossos corações queriam. E com a marca goffrediana de romantismo e coragem.