sobre Goffredo Telles Junior

O Professor Goffredo Telles Junior e a Carta aos Brasileiros

Sinto-me profundamente honrado em participar da Semana em Homenagem ao fantástico brasileiro e inesquecível professor Goffredo da Silva Telles Junior.

De início gostaria de lembrar que sempre nutri enorme admiração pelo saudoso professor Goffredo. No ano de 1953, o professor Goffredo e meu saudoso e querido Tio Alberto Moniz da Rocha Barros concorreram à cátedra de Introdução à Ciência do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O notável professor Goffredo da Silva Telles Junior conquistou a cátedra, em razão não só de seu extraordinário saber como também por ganhar em títulos, já que era professor livre-docente da Faculdade há anos. Nasceu entre eles uma querida e forte amizade, que perdurou até a morte de meu saudoso tio em 9 de dezembro de 1968. Durante anos, o professor Goffredo regeu a cadeira de Introdução à Ciência do Direito no curso diurno e tio Alberto, como livre-docente, no curso noturno da Faculdade de Direito.

Foi um Homem admirável, que unia à sua personalidade multiforme, superior inteligência e cultura, o encanto de sua fina educação de berço e a simplicidade dos verdadeiros sábios. Encantava a todos: professores, estudantes, amigos e pessoas que tiveram a ventura de conhecê-lo.

Neste artigo em sua homenagem, desejo ressaltar o importante e fundamental papel que teve na queda da ditadura militar em nosso país.

Em 8 de agosto de 1977 "das Arcadas do Largo de São Francisco, do 'Território Livre' da Academia de Direito de São Paulo”, o eminente professor GOFFREDO TELLES JUNIOR leu a "Carta aos Brasileiros", tão importante “para os pródomos constituintes de 1987, quanto o Manifesto dos Mineiros o fora para a Carta de 1946 e a desagregação do Estado Novo".

Vamos relembrar as lições contidas na "Carta aos Brasileiros", que sempre guardarão atualidade perene e necessária para as novas gerações.

No ano de 1977, comemorava-se o "Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil" e, assim, "na qualidade de herdeiros do patrimônio recebido dos nossos maiores, queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjectura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade".

Cabem às novas gerações "lutar pelos Direitos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras".

Só é legítima a lei provinda de fonte legislativa e "a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito". No seio da comunidade e do Povo "as ideias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida". A fonte legítima secundária das leis é o próprio legislador, ou o conjunto de legisladores que compõem os órgãos legislativos dos Estados. Mas, os legisladores ou os órgãos legislativos "somente são fontes legítimas das leis enquanto forem representantes autorizados da comunidade, vozes oficiais do Povo, que é a fonte primária das leis". A escolha "legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna, por ele também elaborada. E que é a Constituição".

A ordem social "justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes. A fonte genuína da ordem não é a Força, mas o Poder". "Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder". O Poder é produto, não da força, mas do "consenso popular", enquanto a Força é "um mero instrumento do Governo". A Força é útil, como mero instrumento, "para assegurar o respeito pela ordem jurídica vigente e não para subvertê-la ou para impor reformas na Constituição".

Notável lição sobre a distinção entre Força e Poder.

A Constituição é soberana e a lei só é válida se sua elaboração obedecer aos preceitos constitucionais e daí surge o princípio da "conformidade de todas as leis com o espírito e a letra da Constituição" e desta conformidade depende "a unidade e a coerência do sistema jurídico nacional".

A Constituição só é legítima quanto à sua origem, quando promulgada por uma Assembleia Nacional Constituinte, legitimamente convocada. O exercício do Poder Constituinte, por autoridade que não seja o Povo representado na Assembleia Constituinte "configura em qualquer Estado democrático, a prática de usurpação de poder político".

O Estado de Direito é o único Estado legítimo. É o Estado Constitucional. O Estado de Direito "é o Estado que se submete ao princípio de que governos e governantes devem obediência à Constituição".

Sintetiza a noção do Estado com fantástica expressão: "O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito, por ser guardião dos Direitos, e por ser aberto para as conquistas da ciência jurídica". É "obediente ao Direito, porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque ao exercê-las, o Governo não ultrapassa os limites da sua competência". É "guardião dos Direitos, porque o Estado de Direito é o Estado-meio, organizado para servir o ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das pessoas". É "aberto para as conquistas da cultura jurídica, porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita".

Os Estados, em que o Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte e seus chefes "tendem a se julgar onipotentes e oniscientes" e não respeitam "fronteiras para sua competência"; não toleram críticas e não permitem contestação; são Estados opressores e autoritários, "que facilmente descambam para a Ditadura". São ilegítimos tais Estados, "porque seu Poder Executivo viola o princípio soberano da obediência dos Governos à Constituição e às leis". São destituídos de Poder legítimo. São inimigos da ordem legítima. A Força destrona o Poder legítimo.

É importante ter presente "que o homem se aperfeiçoa à medida que incorpora valores morais ao seu patrimônio espiritual". Os Estados "somente progridem, somente se aprimoram, quando tendem a satisfazer ansiedades do coração humano, assegurando a fruição de valores espirituais, de que a importância da vida individual depende".

O Estado somente será considerado legítimo, evoluído e aprimorado, quando a ordem jurídica reinante "consagrar e garantir o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana" que garanta o "direito de ter um Governo em que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário possam cumprir sua missão com independência, sem medo de represálias e castigos do Poder Executivo; o direito de ter um Poder Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana, elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte".

Em seguida discorre sobre outros direitos que ao Estado de Direito cabe assegurar e, entre eles, está "o direito de pedir a manifestação do Poder Judiciário, sempre que houver interesse legítimo de alguém; o direito irrestrito de impetrar "Habeas Corpus"; o direito de ter Juízes e Tribunais independentes, com prerrogativas que os tornem refratários a injunções de qualquer ordem".

Termina por mencionar que "tais direitos são valores soberanos". São ideais que inspiram as ordenações jurídicas das nações verdadeiramente civilizadas. São princípios informadores do Estado de Direito”, vindo a exaltar: "A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já".

Magníficas lições do verdadeiro Constitucionalismo e que animaram a consciência jurídica e política no sentido de que a luta pela volta do Estado de Direito era missão urgente e necessária.

O conteúdo da "Carta aos Brasileiros" representa um dos mais importantes e belos textos já escritos em toda a história constitucional do Brasil, além de ser guia seguro para bem entender-se o Estado Democrático de Direito.

São lições que não serviram, apenas, à época política conturbada da Nação brasileira, pois continuam atuais para inspirar, especialmente, os Juízes e Tribunais para a aplicação segura e justa das normas jurídicas em um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Servem de alerta, por exemplo, para que a interpretação conforme a Constituição seja o método de interpretação capaz de buscar o melhor sentido das palavras constantes do texto constitucional e não a interpretação conforme a vontade individual de seus ilustres Ministros. O Supremo Tribunal Federal ao zelar pela vigência e aplicação das normas constitucionais no Estado Democrático de Direito, não poderá se sobrepor a elas para reescrevê-las, alterar-lhes o sentido ou o significado predominantes, para impor a vontade de seus Ministros, como substitutos do Poder Constituinte que, em hipótese alguma, representam ou possam representar. O Pretório Excelso deve zelar pela vigência da ordem jurídico-constitucional prevista na Lei Fundamental que temos e não outra que, por acaso, poderia ser idealizada, com a consequente advertência de que o ativismo judicial não pode assumir o papel de criar Direito novo, sobrepondo-se à Constituição e à Lei, muito menos assumir o Judiciário o papel de legislador.

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1 - No dia do velório de meu tio, o professor Goffredo disse a mim, "neste dia estou perdendo um grande amigo, verdadeiro e fiel".

2 - PAULO BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, História Constitucional do Brasil, Ed. Paz e Terra, Brasília, 1988, pg. 452.

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Por Ovídio Rocha Barros Sandoval