Goffredo, a solidão e a liberdade
Eugênio Bucci
Meus amigos, amigos do professor Goffredo,
Hoje, quando celebramos a presença do velho mestre nestas Arcadas, no nosso convívio e, mais ainda, no nosso pensamento de cada dia, venho falar de solidão.
Por favor, não estranhem. Eu bem sei que, em ocasiões como estas, tendemos a afirmar o que nos une, o que nos congrega e por isso nos conforta. Assim, afirmamos que não estamos sós, afirmamos que a morte não retira de nós aqueles que amamos. Afirmamos também que vale a pena viver para lembrar e, mais ainda, prosseguir. No caso de Goffredo, vale desfrutar da alegria que existe nesse ideal de Justiça afetiva e afetuosa que ele nos legou, uma Justiça solidária, que nos faz bem. Tudo isso é verdade, mais do que reconfortante. E também é verdade que, tendo vivido nesta escola a Campanha das Diretas Já, da qual o professor tomou a frente, liderando os estudantes, eu deveria dedicar o meu discurso a essa memória. Ou falar do célebre Círculo das Quartas-Feiras, pelo qual, após a sua aposentadoria, justamente na década de 80, Goffredo voltou a ser estudante, ou até mais, um militante do movimento estudantil: passo a se reunir regularmente com outros estudantes para debater temas políticos e jurídicos do Brasil. Foram tempos bons. Tempos emocionantes, motivadores.
Mesmo assim, eu venho falar de solidão.
Eu me lembro até hoje, com uma nitidez intacta, de uma conversa por telefone que tive com ele, em 1984. Eu me lembro bem porque, ali, o signo do homem só, indivisível e não redutível aos padrões médios, apareceu para mim com grande força. Começo por aí.
Eu estava preocupado com os comentários que corriam na escola, e já explico a razão. Nós preparávamos naqueles dias uma solenidade na sala do Estudante para celebrar o cinquentenário de uma batalha campal entre sindicalistas e integralistas. Essa batalha, hoje considerada um evento histórico, aconteceu no dia 7 de outubro de 1934, na Praça da Sé. Sindicalistas socialistas e anarquistas se lançaram em luta corporal contra seis mil integralistas que se enfileiravam para uma manifestação pública. Houve soco, houve pontapé, houve tiro. Então, em 1984, nós, no XI de Agosto, queríamos homenagear os socialistas de 34.
Foi aí que, poucos dias antes do nosso ato, um professor amigo me alertou: “Cuidado, você pode magoar o professor Goffredo. Ele foi integralista na adolescência.” Hoje é até engraçado pensar nisso. A solenidade que organizávamos não poderia, jamais, atingir um fio de cabelo do nosso querido professor. A verdade é que ele não estava nem aí. Mas, na ocasião, fiquei preocupado.
Liguei para ele. A interlocução foi breve. Ridiculamente patética. Eu fui com aquela conversa previsível: “Professor, nós vamos fazer a solenidade, sim, mas não é nada pessoal, viu?” Ele soltou o ar com enfado – eu ouvia o ruído do outro lado da linha. E logo me desarmou. Disse algo como: “Ih, meu amigo, até você foi cair nessa conversa?” E deu de ombros. Não sei bem como, mas ele sabia dar de ombros assim, pelo telefone mesmo.
* * *
Não é que ele não ligasse para nada disso. Tenho hoje a impressão de que, como todo jurista, Goffredo tinha zelo, muito zelo, com a sua reputação, sua credibilidade, o seu nome. Ele se importava, sim, com o juízo que faziam dele aqueles que ele respeitava. Mas também sabia ficar acima dos rótulos. Foi isso o que mais me chamou a atenção, desde que o conheci.
Naquele tempo, a minha geração ainda era muito aprisionada por essas manias de separar a humanidade em esquerda ou direita, socialista ou capitalista, louco ou careta, etc ou etc. Goffredo não cabia nesses rótulos. Não cabia de modo algum. A gente não conseguiria entendê-lo se fosse interpretá-lo pelas etiquetas ideológicas. Pensando bem, acho que, mais do que o ideal de Justiça, mais do que aquela aura de herói da Democracia que ele sempre teve, com todo o merecimento, esse compromisso essencial com a liberdade de pensamento, a liberdade de ação e a liberdade de opinião, além das patrulhas ideológicas, essa liberdade que ele tinha por natureza mas não ostentava, foi isso o que me atraiu naquele grande mestre, que nos ensinava a viver com elevação.
Anos depois, eu voltei ao assunto com ele, numa entrevista. Guardo até hoje a transcrição desse diálogo. Eu perguntei:
“Ao menos na juventude, o senhor esteve alinhado a Plínio Salgado, durante o movimento da ação integralista brasileira. O senhor foi integralista?”
Ele respondeu:
“Nunca fui ‘alinhado’ com homem nenhum. Durante toda a minha vida, somente estive a serviço de minhas próprias idéias. No apogeu do fascismo e do nazismo, escrevi o seguinte: "Chamamos Estado Moderno o Estado Ético, antiindividualista e antitotalitário. (...) Criado para servir ao homem, orienta-se para os alvos que estejam em conformidade com o destino supremo do mesmo. (...) O Estado Moderno é antitotalitário porque faz prevalecer o Moral sobre o Social e o Espiritual sobre o Moral. Reconhecendo a iniqüidade da tirania, proclama o princípio da intangibilidade da pessoa humana.”
Ele então me mostrou o livro. Essas palavras estão nas páginas 31 e 32 de Justiça e júri no Estado moderno, publicado em 1938.
Ele continuou:
“Estas, e só estas, são as minhas idéias – idéias que estão escritas e publicadas, e que sempre foram sustentadas por mim. Não me venham agora atribuir idéias que nunca tive. Sempre fui antifascista, antitotalitário. Dentro do integralismo, sempre fui antifascista, antitotalitário. Para mim e para meus colegas integralistas, o Estado Integral era precisamente o Estado que se opunha ao Estado Totalitário. Há quem diga, bem sei, que o integralismo era fascista. Hoje, eu sei que o integralismo não era um movimento unificado. Havia uma ala fascista dentro dele. Mas nós, estudantes universitários, nunca tomamos conhecimento desta ala discordante. Nós defendíamos o integralismo para combater o fascismo. E também para combater os partidecos inexpressivos de uma burguesia apática. Esta é a verdade nua e crua. Esta é a verdade comprovada pelo que escrevi em meu citado livro.”
É bom lembrar que, em 1932, Goffredo tinha 17 anos de idade. Depois ficou evidente que havia muitos no integralismo que não eram fascistas. Até comunistas passaram por lá. Ele próprio recordou, nessa conversa comigo, alguns dos seus contemporâneos de integralismo, como Roland Corbusier, que seguiriam mais tarde paro o PCB.
Outra lição que ele me deixou. Fui aprendendo com ele que o caráter de um homem não cabe em escaninhos, em modismos, que a coerência de uma vida pode ser – e geralmente é – menos simplória e menos simplista que o partidarismo imediatista. Goffredo não admitia ser reduzido a um rótulo. Ainda bem que não admitia.
Vou repetir a frase que ele me disse:
“Nunca fui ‘alinhado’ com homem nenhum. Durante toda a minha vida, somente estive a serviço de minhas próprias idéias.”
Isso ficou comigo. Ele foi chamado de comunista e de fascistas – e não era nem uma coisa nem outra. Foi independente. Apenas isso: independente. Claro, pagou o preço que essa independência vem cobrar. Sempre vem cobrar. Sem falta. E vem cobrar parte da fatura em cotas de solidão.
* * *
Quero evocar agora outro habitante destas arcadas. O poeta, brilhante, genial, Philadelpho Menezes, meu contemporâneo, falecido precocemente aos 40 anos de idade. O Phila, como eu, foi militante trotskista. Naturalmente, éramos muito poucos os trotstkistas na São Francisco. E, naturalmente também, ele era de uma organização e eu era de outra (por trás de dois trotskistas que andam juntos sempre há duas organizações diferentes).
Ali no começo da década de 80, nós éramos muito isolados. O que não nos afetava em demasia. Para nós, trotskistas, só havia virtude na ruptura. Então, uma noite, estávamos numa reunião para tratar de temas gravíssimos do movimento estudantil. Eu e o Phila. Naturalmente, outra vez naturalmente, era uma reunião de duas pessoas, apenas duas, eu e o Phila. Eu e ele sentados no banco embaixo da escada.
A discussão corria sem intercorrências. De repente, o Phila fez um silêncio atípico e se pôs pensativo. Aí, do alto da certeza de que nós dois tínhamos a razão perfeita em tudo o que dizíamos sobre os destinos gerais da política brasileira (apesar de nossas divergências, de que muito nos orgulhávamos), embora houvesse aquele pequeno problema, o de ninguém mais concordar conosco, ele olhou o vazio e sentenciou:
“Eugênio, em política a gente precisa aprender a ser minoria”.
Não sei por que, mas nunca esqueci esse pronunciamento do camarada poeta. E de ser minoria eu até que gostava. Anos depois, pude aprender também a ser maioria. Primeiro na escola, e depois no País. Mais recentemente, fui notando que, no fundo, eu tinha muita dificuldade com essa história de saber ser maioria. Ser minoria era difícil, mas ser maioria pode ser pior. Às vezes, me dá uma saudade danada do Phila, com aquele ar que ele tinha de profeta juvenil. Ele sabia ser minoria. Eu também. O problema, antes como agora, é essa tal de solidão.
* * *
Em suas lições, o Goffredo costumava ensinar que solidão não é para as pessoas de carne e osso. Em seus livros, aparece mais de uma vez uma citação de Aristóteles:
“O homem só ou é bruto ou é um Deus”.
Quanto aos que não são nem brutos nem são divindades, as pessoas comuns, como nós, aqui, nós dependemos disso, de viver próximos uns dos outros. Goffredo, nos livros, também fazia referência a Santo Thomaz de Aquino, para quem só havia três situações em que o homem suportaria a solidão: a demência irreversível, a fatalidade (como a do naufrágio, que por um golpe do destino pode terminar seus dias esquecido numa ilha deserta), e um tipo particular de santidade, na qual o sujeito atinge tal nível de grandeza espiritual que não precisa da companhia de ninguém.
Fora isso, Goffredo escrevia, é bom ter gente por perto. Mas com o seu exemplo ele também ensinava: é bom ter gente por perto, mas não qualquer tipo de gente. E muito menos a qualquer preço.
Hoje, acho que entendi um pouco desses ensinamentos. A companhia só tem sabor e só tem valor quando a gente compreende o sabor e o valor da nossa própria individualidade, acima de qualquer rótulo. No mais, a solidão estará sempre conosco. Pincipalmente na hora da morte.
* * *
No fim de 1984, eu procurei o Goffredo outra vez. Disse que tinha um assunto pessoal a tratar. Eu sentia que o momento da formatura chegava, eu ia ter que parar com aquela boa vida de estudante, teria de arrumar um emprego – eu queria ir para o jornalismo – e me resignar a uma vida de pequeno burguês. Outra vez, estava preocupado. Agora comigo mesmo.
O Goffredo agendou uma reunião num departamento, não me lembro mais onde, nem sei se era o dele – ele ainda não tinha se aposentado, só se aposentaria em maio de 1985. Só sei dizer que havia uma parede em madeira de tom escuro atrás dos cabelos brancos do professor, o que me fez conservar aquela conversa com um ar que eu chamaria de sombrio. Ele olhou para mim e perguntou:
“E então, o que você queria me dizer?”
Eu fui ao ponto:
“Sabe o que é, professor, eu acho que me sinto muito sozinho”.
Ele não segurou uma risada. Uma risada boa. E falou:
“Você também, meu filho? Bem vindo.”
* * *
Depois, já em 2006 ou 2007, eu morava em Brasília e recebi um recado pela secretária: “O professor telefonou”. Liguei de volta na hora. Ele foi breve:
“Meu amigo, estou com saudade das nossas conversas”.
Fui visitá-lo. Conversamos por duas, três horas. Eu, ele, Olívia e Maria Eugênia. Acho que, naquela tarde, aplaquei um pouco da solidão que ele sentia. Mas, muito mais, ele arrefeceu a minha. Não tive chance de contar a ele como a nossa última conversa me fez bem.