sobre Goffredo Telles Junior

Goffredo Telles, o Moço

Minha história com Goffredo é paradoxal. A convivência com sua pessoa foi mínima. Poucas vezes nos encontramos fisicamente, apertando as mãos, olhos nos olhos. O que não impediu que estivéssemos sempre unidos por constante admiração recíproca.

Da minha parte, tocado pela unanimidade do entusiasmo que cercava a figura do mestre. Da sua parte, pela nobre generosidade com que me distinguiu ao tomar conhecimento de minha pessoa na leitura dos artigos que por anos seguidos eu publicava no jornal “O Estado de S.Paulo”.

Nosso relacionamento pessoal foi sempre à distância. Começou quando eu, estudante de Direito na PUC, no alto das Perdizes, certas manhãs, na década de 50, atraído pela eloquência do jovem Catedrático de Introdução à Ciência do Direito e por sua obra escrita, cabulava as aulas da Pontifícia Universidade Católica para me associar aos alunos de Goffredo aprendendo mais e melhor com suas aulas.

Nunca me atrevi a apresentar-me ao mestre, nem a cumprimentá-lo, um tanto intimidado pela sua presença magnética. A timidez me segurava afastado dele, no respeito à distância regulamentar, anonimamente.

Suas aulas eram acompanhadas com devoção quase mística pelos alunos. Terminavam com salvas de palmas, e muitas vezes com homenagem de flores levadas gentilmente por mãos femininas de alunas embevecidas.

Sua figura, aos meus olhos, assumia o porte de um personagem shakesperiano. Sugestionado por esta impressão eu associava seu perfil ao do maior ator do teatro e do cinema daquela época, o inglês sir Laurence Olivier, especializado na interpretação de personagens solitários e passionais, marcados pela tragédia e pela grandeza do destino.

II

Nosso relacionamento, ao início, era de uma só mão, somente de minha pessoa para com a pessoa do mestre. No entanto, a partir de minha continuada colaboração em “O Estado de S.Paulo”, jornal lido diariamente por Goffredo, ele tomou conhecimento de minha existência na república das ideias, e então nosso relacionamento passou a ser de mão dupla, fato que muito me honrou. No dia 21 de agosto de 1999, recebi do professor Goffredo um exemplar de sua obra capital A Folha Dobrada. Vinha com a seguinte dedicatória:

“Ao pensador Gilberto de Mello Kujawski, caríssimo amigo, ofereço, com a maior admiração, minha modesta crônica dos fatos deste século – desde a “Semana de 22” – e das ideias que o tempo suscitou.”

Segue-se a assinatura e a data.

Promovido a “pensador”e “amigo” pela generosidade e o carinho de um mestre situado no ponto mais alto da fama, concluí, mais uma vez, que a vida é mesmo imprevisível. Aquele luminar da minha juventude, a cujas aulas eu assistia disfarçado no maior anonimato, agora se revelava leitor assíduo de meus modestos artigos. Em lugar de me envaidecer, minha reação foi a de exasperar meu sentimento de responsabilidade, como me acontece sempre que recebo alguma palavra de elogio. Teria que me esforçar ao máximo para jamais decepcionar leitor tão ilustre, o qual, de vez em vez, me telefonava a propósito de algum artigo.

A Folha Dobrada, livro alentado, de quase mil páginas, condensa as memórias de Goffredo Telles Junior. Em minha opinião, é sua obra mais densa e representativa, na qual confluem o acadêmico brilhante e o homem, o homem “de carne e osso”, como diria Unamuno, “aquele que nasce, sofre e morre – sobretudo o que morre -, aquele que come e bebe e joga e dorme e pensa e quer, o homem a quem vemos e ouvimos, o irmão, o verdadeiro irmão” (Do sentimento trágico da vida).

É o indivíduo, ou melhor, a pessoa de Goffredo que se revela nessas páginas marcantes, a pessoa no seu projeto vital e nas suas circunstâncias, num texto dominado pelo amor inflamado e incondicional à sua vocação. A propósito, qual a verdadeira vocação de Goffredo? O jurista consumado, o jus-filósofo de projeção internacional? Ou o político idealista, íntegro, dedicado integralmente ao amor à pátria, que atinge sua perfeita maturidade naquele discurso ciceroniano conhecido como Carta aos Brasileiros? Ou, quem sabe, aquele advogado benemérito, que defendia de graça os pobres, ao início de sua carreira?

A vocação de Goffredo envolve tudo isso e algo mais, algo superior e condicionante de todas suas diversas trajetórias biográficas. A vocação maior e dominante em Goffredo foi a vocação de humanista. Humanista no sentido integral definido por Unamuno ao corrigir Terêncio (“sou homem e nada do que é humano é estranho para mim”). O pensador espanhol pretende dizer melhor: “sou homem, e como estranho não considero nenhum outro homem.”

O humanismo goffrediano ultrapassa a esfera do humano. Começa antes e vai além do limite antropológico, tem um fundo cósmico, compenetrando o ser humano com a imensidão estelar do Cosmos. Aos dez anos de idade, andando a cavalo na Fazenda Santo Antônio, juntamente com seu irmão Ignácio (que seria outro intelectual notável), em companhia de outro irmão, Gil, andando também muito a pé por sendas secretas em busca dos mistérios da floresta, pescando e filosofando, com o infinito do céu por cima e envolto no “silêncio mágico do mundo que adormece”, o menino Goffredo definiria assim o sentimento do mundo que guardaria pela vida afora em seu íntimo:

“Eu tinha um sentimento – uma espécie de intuição – de que, na poeira dos caminhos, nas florzinhas do campo, nos perfumes da terra, havia uma energia manifesta, um mistério oculto, que me penetrava, como por encanto, dando-me a sensação de que todas as coisas do Universo e eu compúnhamos um só ser, uma só realidade, como as notas de uma sinfonia” (A Folha Dobrada, p.41).

Anunciava-se aqui o germe daquele imperativo de integração que haveria de comandar a futura visão do humanista, refletindo-se nos subsistemas do direito, da política e da ciência que haveria de plasmar no curso de sua existência tão produtiva.

Seu humanismo é um humanismo cósmico, com Deus ao fundo.

Avesso à monomania cega de dessacralização do mundo e da história imposta pelo iluminismo, discípulo de nosso professor Leonardo van Acker, de quem também fui aluno, Goffredo bebia nos textos de Santo Tomás e da escolástica, mais tarde complementados por Bergson, pensador que conhecia a fundo, e que foi dos primeiros a divulgar em língua portuguesa.

III

Goffredo não escondeu jamais sua origem aristocrática, descendente dos mais tradicionais troncos paulistas. Por parte de mãe era neto de Olívia Guedes Penteado (1872-1934), a grande dama da sociedade e da cultura, à qual Goffredo desde pequeno esteve sempre ligado intimamente e da qual recebeu a base de sua formação cultural e de caráter, antes mesmo da educação escolar fora de casa. O futuro grande homem não seria quem foi sem o influxo que recebeu no aconchego daquela grande senhora “intuitiva, sensível, clarividente”, que estimulava desde muito cedo a formação cultural do neto, percebendo de longe todo o potencial de sua inteligência.

Dona Olívia, que passava longas temporadas em Paris, mostrou muita simpatia pela agitação dos intelectuais naquela cidade, aplaudindo o mundo novo que ali se abria no campo das artes. Segundo relato do neto, em 1923, depois da Semana de Arte Moderna (1922), “em companhia de Paulo Prado, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, frequentou a Academia de Lhote e os ateliês de Picasso, Léger, Brancusi, Brecheret. Visitou Villa-Lobos em seu modesto apartamento” (A Folha Dobrada, p.17).

De volta ao Brasil, em 1924, abriu em sua casa, obra do arquiteto Ramos de Azevedo, um pavilhão especial, o Salão Moderno de Olívia Penteado, onde passou a receber toda semana a nata da intelectualidade e das artes em São Paulo.

A árvore genealógica de Olívia Penteado atesta que ela era filha do barão de Pirapitingui, bisneta do fundador de Campinas, e descendente de bandeirantes famosos, como Antonio Raposo e Gaspar Vaz da Cunha (Jaguarete), entre outros.

Pois bem, aristocrata pela família, pelo nível social, pelo gosto e pela cultura, D.Olívia tinha tudo para rejeitar, visceralmente, as ideias e a arte modernista, para dizer um “não!” indignado aos intelectuais, aos pintores e compositores do seu tempo, Mário e Oswald de Andrade, Picasso, Léger, Villa-Lobos, e tantos outros.

Pois foi o contrário que aconteceu. Ela não só aderiu à nova linguagem estética, como acolheu, estimulou e ofereceu proteção aos seus principais representantes.

O exemplo luminoso da sua querida avó contagiou o neto. Não só no terreno da arte e das ideias, como no das opções políticas. Com toda sua souche (origem nobre, ilustre ascendência, entroncamento nobiliárquico) Goffredo teria tudo para ser um empedernido conservador, um daqueles reacionários de dentes venenosos e garras afiadas como tantos homens de sua mesma condição.

Não seria preciso lembrar da Carta aos Brasileiros para seu autor mostrar sua indiscutível formação democrática e liberal. Em seu discurso acadêmico, no contato com os alunos, nas linhas mestras de seu pensamento político e jurídico, ele já mostrava e demonstrava quem era desde sua maturidade: o maior paladino da democracia e do liberalismo. Não do “liberalismo individualista” do século XIX, mas do liberalismo social, aquele que tem em vista o bem da sociedade como um todo.

Aqui se impõe uma distinção que costuma passar inadvertida.

Todo ser humano é por força conservador, na medida em que todos nós somos herdeiros do passado. Ao nascer e ao crescer herdamos a língua natal, os usos, as crenças, as ideias e as expectativas do futuro dominantes. Em outras palavras: o indivíduo é sim, a realidade radical, e nisso podemos ficar com Margaret Thatcher. Mas o que a primeira ministra do Reino Unido não enxergava é que todo o conteúdo, a substância do indivíduo é toda ela de natureza essencialmente social. Quem inventou a língua que falamos não foi ninguém individualizado, mas alguém anônimo. E este “alguém” anônimo que habita em cada um dos indivíduos, forjando a língua, usos e costumes, crenças (em Deus ou na Ciência), esperanças no futuro, este alguém é a sociedade, que não só reside fora de cada um de nós, sim que se instala dentro de cada um de nós.

Em suma, ao falar, ao pensar, ao agir, ao viver, somos todos herdeiros, porque falamos, pensamos, agimos e vivemos segundo padrões que recebemos do passado e nenhum indivíduo inventou. Este legado do passado constitui um patrimônio comum a toda a sociedade, do qual todos participam e nenhum indivíduo inventou, mas a sociedade em seu conjunto.

De onde se segue, por força, que de certa forma, na medida em que somos herdeiros necessários do passado, somos todos conservadores compulsivos, queiramos ou não.

Isto posto, a saber, que somos todos forçosamente herdeiros do passado, não está posto que somos obrigados a reproduzir o passado em nosso presente, no esforço de dublagem dos padrões de vida de nossos antepassados. Por uma razão singela e imperiosa: porque a vida é um movimento que se faz para a frente, rumo ao futuro. É impossível reeditar o passado no presente. A língua natal que recebemos com o leite materno, que nem nós nem ninguém em particular forjou, ao ser falada e escrita na atualidade, embora essencialmente a mesma língua, será renovada de acordo com as circunstâncias próprias a cada século e a cada geração. Não é porque falamos e escrevemos a língua portuguesa, gerada na Idade Média, que somos obrigados a falar e a escrever como no tempo de Gil Vicente.

Em suma, herdamos o passado não para reproduzi-lo aqui e agora, e sim para fazer outra coisa com ele. O dilema “conservador ou progressista” não passa de falsa alternativa, porquanto aquelas duas opções não são excludentes. Muito pelo contrário: toda inovação destinada a prosperar não nasce da ruptura com o passado e sim do desdobramento ou evolução deste, apoiado no passado, como as novas palavras florescem alimentadas pelo seu étimo ou radical. A história, como a língua, avança etimologicamente, não por rupturas, mas por variações de um tema seminal. Por vezes o avanço se faz por saltos bruscos, parecendo ruptura, mas, na verdade o salto foi preparado, cumulativamente, no subsolo oculto do passado.

Goffredo Telles Junior soube fugir ao absurdo maniqueísmo esquerda ou direita, progressismo versus conservadorismo. Ao início de seu depoimento biográfico, A Folha Dobrada, consta certa passagem na qual ele se dá conta perfeita de que sua paixão pela integridade proíbe opção exclusiva por um dos termos daquele dilema, com exclusão do outro:

“Assim, o que verifico é que há uma certa afinidade entre o que sinto e o que faço hoje e o que sentia e fazia antigamente. Esta constatação tem me levado a meditar sobre o processo de minha existência. E o que descubro é que, em camadas fundamentais da minha natureza, o meu ser atual é, de certa forma, a projeção adaptada de meu ser do passado” (p.37, grifo meu).

Atualmente, aquele impasse entre “revolução” ou “reação” cedeu lugar a fórmula menos excludente e mais abrangente. Fala-se em “modernização conservadora”. Creio que esta conciliação entre os contrários seria do agrado de Goffredo.

IV

A figura humana de Goffredo, seu discurso, seu pensamento e sua ação, encontram-se indissoluvelmente ligados ao cenário da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que foi, segundo suas próprias palavras, “a sede mobilizadora do perfazer de sua vida”. O mestre e a Faculdade formam união substancial. Foi enquadrado nos seus domínios, vergado sob o peso histórico das Arcadas, que ele conquistou sua postura docente e profética aos olhos dos que o admiram dentro e fora dos seus muros.

Pois a Faculdade franciscana representa o elo de união entre o passado e o presente da nossa história paulista. É o túnel do tempo no qual se constrói a continuidade entre as sucessivas gerações que por lá passaram. A arquitetura venerável das Arcadas foi sempre o lugar natural de Goffredo, o reduto do seu encontro com o destino, o lugar privilegiado no qual seu discurso e seu exemplo alcançavam repercussão histórica, ecoando por todo o país como apelo de convocação cívica e patriótica.

Se a Faculdade foi o seu cenário insubstituível, por sua vez, o ambiente que o cercava e o alimentava, emprestando-lhe apoio, calor humano e acústica, seu elemento vital era a Juventude, moços e moças das mais diversas classes e procedências, que o ouviam, acompanhando cada uma de suas palavras, o coração batendo mais forte e o aplauso estrondoso abraçando-o e sufocando-o no seu carinho e no seu entusiasmo.

O efeito deste banho renovado de calor humano sobre a pessoa de Goffredo era impressionante. Ele se contagiava na tribuna com a vitalidade explosiva da juventude que o cercava e o carregava nos braços. Seu rosto corava de satisfação profunda e a força da juventude renovava cada célula do seu organismo.

Graças à constante transfusão de alma recebida da juventude, Goffredo conservava-se jovem e elástico o tempo todo, irradiando permanente jovialidade e alegria fecunda de viver. Ao lado de José Bonifácio, o moço, a Faculdade ganhou em sua galeria de vultos históricos mais um depositário de eterna juventude – Goffredo, o moço.

Não poderíamos encerrar esta homenagem ao nosso querido mestre e amigo, sem recordar como fecho deste texto as palavras memoráveis, repassadas de funda emoção, de um de seus discípulos mais ilustres, escritas quando do falecimento do cada vez mais saudoso guia de todos os paulistas e brasileiros. Referimo-nos a Celso Lafer:

O professor Goffredo tinha o gosto e o dom da palavra associados ao rigor do pensamento e à clareza da exposição. As suas aulas tinham a beleza da obra de arte, pois combinavam uma eloquência desataviada provida do sal da emoção. Eram proferidas por um ser humano de rara elegância e perfeita civilidade. Tinham o lastro da exemplaridade de sua constante preocupação com a conduta ética. São estas dimensões que também foram a marca identificadora da sua presença e da firmeza das suas posições como intelectual público no espaço da palavra e da ação em nosso país” (Celso Lafer, Folha de S.Paulo, 29-06-2009).

Por Gilberto de Mello Kujawski.