Em 16 de maio de 2015, comemora-se o centenário do nascimento de Goffredo Telles Júnior, pessoa que se destacou em várias áreas, notabilizando-se principalmente no sacerdócio da docência, que talvez tenha lhe dado o seu maior título, o de professor, na mais ampla e completa acepção do termo.
Tive a oportunidade de escrever outros dois textos em homenagem ao Professor Goffredo. O primeiro, em comemoração aos seus noventa anos, publicado no Jornal da USP em maio de 2005. O segundo mais recentemente, para tratar das manifestações populares ocorrida no Brasil em junho de 2013, divulgado pelo Migalhas em 26 de julho de 2013.
Volto-me agora a uma nova homenagem. Luto para que a minha gratidão ao Professor Goffredo não seja presa fácil do tempo. Junto-me a todos os outros que festejarão o centenário do grande mestre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o inolvidável Professor da Disciplina da Convivência Humana.
Mais uma vez tento estabelecer uma conversa com o Professor Goffredo, que tanto lutou pela redemocratização do Brasil nas décadas de 1970 e 1980. Uma vez mais essa conversa é motivada pela contundente crise política e institucional que assola o país. Presenciamos os efeitos da indignação da população brasileira aflorada nos manifestos de junho de 2013 e que cada vez mais ganham força nas ruas em função de várias razões, como a ininterrupta hemorragia da corrupção, que gangrena as estruturas sociais do país e solapa as esperanças dos brasileiros em geral. Novas manifestações populares surgiram contra o atual governo em 2015, uma em 15 de março e outra em 12 de abril.
Nesse conturbado cenário, vem à tona a necessidade da reforma política. A necessidade de se alterar a forma com que os cidadãos brasileiros são representados no Poder Legislativo federal, estadual e municipal.
Penso que a imensa maioria defende a democracia, forma em que o povo elege livremente os seus representados e que, no caso do Brasil, foi reconquistada recentemente e a duras penas.
Após os manifestos populares dos últimos anos, há aqueles que cogitam uma Constituinte exclusiva para a reforma política, envolvendo, dentre outros aspectos, o financiamento de campanha, sistema eleitoral, voto distrital, suplência de senadores e coligações partidárias. Enfim, há os que defendem a possibilidade de um processo constituinte específico para fazer a reforma política em suas variadas vertentes.
São as questões envolvendo a Assembleia Constituinte que nos levam a nos socorrer ao mestre Goffredo. Sobre esse tema, o consagrado Goffredo escreveu, em 1986, o livro A Constituição, a Assembleia Constituinte e o Congresso Nacional, publicado pela Editora Saraiva. Obviamente, essa obra voltou sua atenção para a Assembleia Constituinte que deu origem à Constituição de 1988. Feita essa importante ressalva, tentaremos extrair desse livro alguns ensinamentos do Professor Goffredo para o atual momento vivido pelo Brasil, especialmente quando pululam iniciativas para uma nova Constituinte, especificamente para a reforma política.
Há trinta anos, quando escreveu o citado livro, Goffredo fazia a seguinte abordagem, que ainda se mostra atual: “No povo, o sentimento generalizado de que é preciso mudar a Constituição resulta do conflito ou contradição entre as realidades novas da vida e a ordenação velha do Estado. É um sentimento de protesto contra a ordenação constitucional vigente, que impede a eclosão das grandes reformas sociais que o país exige. E é, também, não raro, um sentimento de revolta contra muitas cousas: contra o desempenho negativo do Congresso Nacional e de outros poderes da República; contra a falta de canais idôneos de comunicação entre os diversos setores da coletividade e os órgãos legislativos e planejadores do Governo; contra violências, desmandos e escândalos públicos, que permanecem impunes, comprovando, aos olhos de todos, a deterioração das instituições” (1986, p. 43).
Conforme se infere do mencionado livro do Professor Goffredo, a Assembleia Constituinte é algo muito sério e importante para um povo, pois dela depende a elaboração e promulgação de uma nova Constituição. Não é qualquer crise institucional que justifica a abertura de um processo constituinte. Para o Professor, a convocação de uma Assembleia Constituinte somente deve ocorrer como coroamento de revoluções vitoriosas ou como fato inicial de revoluções por fazer (1986, p. 39). Em política, há revolução quando há abolição ou ruptura do regime ou das instituições vigentes, quando o velho regime é renegado pelo regime novo, idealizado e desejado pela absoluta maioria da população (1986, p. 40).
Muito embora o pranteado Goffredo tenha elaborado o livro em análise considerando um cenário político pretérito e não o atual, resta válido, de qualquer forma, o alerta de que a Assembleia Constituinte tem importância extrema para um povo, de modo que somente deverá ser utilizada em situações especiais, verdadeiramente legítimas e indispensáveis, não podendo ter por objetivo simplesmente a substituição de governantes, a transferência de poder de um grupo para outro, muito menos constituir uma mera emenda à Constituição já existente.
Ainda que, em tese, fosse possível se valer de uma Assembleia Constituinte específica para a reforma política atual do Brasil, o que se admite apenas para argumentar (primeiro porque eu discordo dessa possibilidade e, segundo, porque o Goffredo não se manifestou sobre ela em seu livro), mostra-se oportuno trazer algumas das advertências feitas pelo Professor quanto à Emenda Constitucional nº 26/1985, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte da qual resultou a Constituição Federal de 1988.
Mesmo com os precedentes históricos brasileiros (Constituinte de 1891, Constituinte de 1933/1934, Constituinte de 1946 e a própria Constituinte de 1988), não se deve simplesmente transformar o Congresso Nacional em Assembleia Constituinte. Alertava o Professor Goffredo que quando o povo elege seus representantes para o Congresso Nacional, designa deputados e senadores para as missões específicas do Poder Legislativo, principalmente a de elaborar leis ordinárias, que regulam as relações comuns entre os homens, que podem ser revogadas e substituídas por outras leis. Já quando o povo elege seus representantes para a Assembleia Constituinte, escolhe legisladores para elaborar uma lei maior, única, voltada à instituição chamada Governo e que não se altera a qualquer momento (1996, p. 54).
Em continuidade, o mestre Goffredo ensinava que a tarefa de fazer leis ordinárias é diferente da missão de elaborar a Constituição de um país. Para fazer leis ordinárias, o que se exige dos legisladores é fidelidade ao partido ou grupo a que pertencem. Já a missão de elaborar a Constituição pressupõe conhecimento de Teoria do Estado e de Ciência Política, como também “uma noção arquitetônica do Estado, um conhecimento global dos Poderes e dos órgãos do Governo, tudo isso subordinado à ideia soberana dos Direitos fundamentais do homem, e ao propósito de promover a Justiça Social” (1986, p. 55). Como dizia ele, haverá, sem dúvida, bons representantes do povo para as duas tarefas, mas, certamente, haverá bons representantes do povo para elaboração de leis ordinárias, que não sejam os representantes convenientes para a elaboração da nova Constituição. Ademais, haverá sempre bons representantes do povo para elaborar a Lei Magna, mas que não possam, ou não queiram, ser membros do Congresso Nacional.
De qualquer forma, não seria crível admitir que tão alta missão — instituir a reforma política do Brasil — fosse atribuída aos deputados federais e senadores eleitos pelo sistema que se pretende alterar. Induvidoso que esses representantes estarão sempre obedientes às suas arcaicas lideranças políticas, responsáveis pelo indesejado estado de coisas que se pretende mudar. É difícil pensar que os atuais donos do poder votem alterações substanciais que irão afastá-los do poder.
Para o Professor Goffredo, nenhum poder, nenhum deputado ou senador do Congresso Nacional, muito menos o Presidente da República, tinha credencial para querer influir no ânimo da Assembleia Constituinte convocada em 1985.
Transportando aquela ideia do mestre Goffredo para o momento atual, diria que cabe ao povo, por meio de eleição, e não ao Presidente da República, nem ao Congresso, dizer quais serão os membros da Assembleia Constituinte que se cogita para a desejada e necessária reforma política do Brasil.
Em outras palavras, se possível fosse adotar uma Assembleia Constituinte específica para a reforma política (possibilidade que não foi analisada pelo Prof. Goffredo para o cenário atual e com a qual eu não concordo), é certo que o Congresso Nacional não poderia, de qualquer forma, ser travestido em poder constituinte, sob pena de manifesta usurpação do poder do povo.
No estágio de desalento político atual, as ruas clamam e continuarão clamando por mudanças, mas por mudanças de qualidade para o Povo, mudanças que venham verdadeiramente resultar no bem comum e no fortalecimento da Democracia deste país. Acredito que esse também seria o desejo do inesquecível Professor Goffredo, se entre nós estivesse. O sonho dele continua vivo e mostrando o caminho.
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*Rogério Alessandre de Oliveira Castro é advogado, professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. Autor dos textos 90 anos com Goffredo e Como o Professor Goffredo veria as recentes manifestações populares?