sobre Goffredo Telles Junior

Cultura e Revolução

Em semana de celebração do legado do Professor Goffredo, salta aos olhos como o Brasil de hoje padece das mesmas adversidades de décadas atrás. Vejamos que dizia o Mestre, nos idos de 1955, em conferência na Faculdade de Direito do Largo de S.Francisco:

"Nós sentimos, muitas vezes dissemos e escrevemos, por exemplo, que o Parlamento Nacional representa a nação. Ora, nós sentimos que isto não é verdade. O Parlamento Nacional, só por ficção é que representa a nação."

Confira abaixo a íntegra da Conferência.

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CULTURA E REVOLUÇÃO

Conferência Pronunciada pelo Professor Dr. Goffredo da Silva Telles Junior, em 9 de agosto de 1955, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação, Professor Cândido Motta Filho; excelentíssimo senhor Representante do Governador do Estado; excelentíssimo senhor Representante do Presidente da Câmara Municipal; excelentíssimo senhor Professor Ataliba Nogueira; senhor Luíz Carlos Pereira Barreto, digno Presidente do Centro Acadêmico Onze de Agosto; meu presado amigo senhor Mario Chamie, a quem agradeço comovidamente as palavras que acabam de ser proferidas a meu respeito; minhas senhoras e meus senhores; meus amigos:

Que palavras, meus amigos, vos hei de dirigir nesta solenidade em que o Centro Acadêmico Onze de Agosto comemora a Festa da Tradição! Esta não é, certamente, a hora oportuna para fúteis discursos, nem este o ambiente propício para despreocupado jogo de frases de retórica.

Eu escolhera um tema, que está evidentemente na ordem do dia, eu escolhera para o meu discurso desta noite o tema da revolução. Devo dizer-vos que era minha primeira intenção fazer nesta noite uma simples exposição doutrinária sobre a teoria da revolução, ou seja, sobre o chamado direito à resistência. Entretanto, ontem e hoje tenho conversado com diversos estudantes desta Escola e eles me pediram que o meu discurso doutrinário fosse não apenas um discurso doutrinário no alto campo dos princípios, mas fosse também um discurso objetivo, com a análise dos fatos reais, contendo quem sabe, uma orientação prática. Não vou, entretanto, meus amigos, alongar-me demais uma vez depois-de-amanhã na nossa data de Onze de Agosto, na sessão solene que a nossa Congregação realiza, terei oportunidade de, novamente me referir a todos estes temas com mais minúcia.

Devo, de início, fazer uma advertência que me parece absolutamente necessária, uma advertência que faço para evitar quaisquer interpretações errôneas que podem ser dadas às minhas palavras. Quero, de início, dizer-vos, meus amigos com toda a sinceridade: Não sou político, isto significa não faço política partidária, não pertenço a nenhum partido, sou um mestre-escola e não quero ser mais nada. Disse-vos que não tenho nenhum partido. Poderia dizer-vos que tenho um único partido e este se chama Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Eis porque posso falar sobre questões políticas com absoluta isenção de ânimo. Escolhi um tema que vem agitando nestes últimos tempos a nação, o tema da revolução, que está sem dúvida na ordem do dia. Todos nós sentimos um mal estar; há um mal estar generalizado, um certo desse sossego, uma carta inquietação; os nossos espíritos estão apreensivos. Que estará acontecendo realmente nos bastidores da política? Reconheçamos, sem querer entrar agora no âmago da questão, reconheçamos apenas o fato: HÁ um mal estar, há uma certa inquietação. Os jornais de hoje, por exemplo, refletem de um modo claro o desassossego nacional; os jornais de hoje como que só têm uma preocupação: O golpe de estado, regime de exceção.

Nos nossos espíritos, nos espíritos de todos aqueles que estão habituados a se debruçar sobre os problemas nacionais existe uma grande interrogação – Será legítimo, neste momento, um golpe de estado?

A solução mesmo em tese, a solução desta questão exige máxima prudência, porque, notem bem senhores, tanto pode a capitulação diante do despotismo levar à escravidão e ao extermínio, como pode a resistência intempestiva levar à anarquia e à desagregação.

Todos conhecem aquelas normas, aquelas normas tão simples mas fundamentais para toda a revolução legítima. A primeira é esta: ‘’A revolução há de ser necessária’’.

Que significa isto? Significa que nenhuma revolução se justifica se for possível atingir os mesmos fins pelos meios legais. O emprego de meios violentos só se justifica se for possível atingir os mesmos fins pelos meios legais. Esta é uma norma intuitiva. Se a Constituição e as leis do país fornecem à nação meios para alterar a atuação política não se compreende que se faça uma revolução inútil.

Realmente, a segunda norma que regula as revoluções legítimas é esta: ‘’A revolução há de ser útil’’. Não basta que ela seja necessária, é preciso que ela seja útil, isto é, que ela seja apta para restabelecer a ordem justa. No caso contrário, haverá sempre o grave perigo da agravação dos males que afligem a nação. As agitações sorrateiras, os levantes imaturos, os golpes ineficientes devem ser sistematicamente condenados.

E a terceira norma. A terceira norma é a seguinte: Os meios empregados hão de ser proporcionais aos males combatidos porque se a revolução causar maiores transtornos e maiores escândalos do que os causados pelo governo injusto que se quer derrubar então é melhor não fazê-la.

Em consequência, a revolução só é justa se ela for necessária, útil e proporcional. Mas não é só, meus amigos, não é só, e é para isso que vou dizer agora que chamo a especialíssima atenção dos estudantes desta escola: Uma revolução só é justa se ela for construtiva. Existem as revoluções que destroem, que devastam e que arruínam, e ao lado dessas as revoluções que realmente substituem um regime ou um governo fracassado por um outro regime ou um outro governo, não, realmente, revoluções construtivas, que trazem no seu bojo a ideia renovadora. Há revoluções vazias, estéreis portanto, e há revoluções fecundas que edificam uma nova nação. Daí o motivo do título desta ligeira palestra ‘’Revolução e Cultura’’, ‘’Cultura e Revolução’’, porque nenhuma revolução se justifica se não for o resultado de uma cultura, nenhuma revolução terá razão de ser motivo nem objetivo se ela não resultar de uma notável composição de vida e de política.

Que vemos nos dias que correm em nossa pátria? Que vemos no Brasil?

Assistimos, neste momento, a um movimento revolucionário incontestável. O golpe de estado é apregoado na praça pública e no Parlamento.

Diante desta situação o homem de pensamento, o homem habituado a meditar sobre os problemas, vê surgir diante dele duas perguntas: Em primeiro lugar, o golpe que se quer dar visa o que? Contra o que se quer dar o golpe?; e em segundo lugar, golpe para que: qual é o objetivo do golpe? Em primeiro lugar, portanto, pergunta-se: Contra que?; e em segundo lugar, para que?

Se nós analisarmos a situação nacional, verificamos que a nação vive dentro da ordem constitucional. Temos uma Constituição democrática e o regime está em vigor, a Constituição está em vigor. O Vice-Presidente da República, na falta do Presidente, assumiu a Presidência e está exercendo legalmente o seu mandato; não há nenhum arbítrio, não há prepotência, não há opressão. Dentro em pouco se vão-se realizar as eleições normais para sucessão presidencial. Dentro desse quadro, porque motivo se fala tanto em golpe? Não sejamos ingênuos, meus amigos, quando fazemos essa pergunta. Os objetivos do golpe não constituem nenhum mistério e surgem bem claros diante dos nossos olhos. O objetivo do golpe, em última análise, simplificando ao máximo este problema, em última análise o objetivo do golpe outro não é senão o de impedir que exerça o governo algum candidato que for eleito pelo povo mas que não mereça o apoio daqueles que querem dar o golpe. Se nós quisermos  simplificar ao máximo esta questão diremos que a teoria que não é metafísica mas bem simples, a teoria daqueles que pregam a necessidade do golpe outra não é senão a seguinte: A eleição será legítima se levar à Presidência da República determinado candidato, mas será ilegítima se levar à Presidência da República qualquer outro candidato. Sendo ilegítima deve a eleição ser anulada e isto só é possível por meio do golpe. Se nós meditarmos um pouco sobre os discursos que têm sido feitos na Câmara, sobre os artigos que a imprensa ter estabelecido a favor do golpe, verificaremos que, no fundo, em última análise, essa é a teoria do golpe.

Ora, essa doutrina em favor do golpe entra, evidentemente, em contradição flagrante com os princípios fundamentais do nosso regime, está incontestavelmente em contradição flagrante com a soberania popular e com o processo do sufrágio universal. Entretanto, apesar desta contradição, da contradição entre aqueles que sustentam a necessidade do golpe e os princípios que informam o regime vigorante, apesar desta contradição, os que querem o golpe, em última análise, afirmam: O golpe, dizem eles, é uma solução democrática, é uma solução democrática porque visa afastar do governo um homem ou os homens que como prova e seu ou os seus passados, só poderá macular o regime vigorante; visa afastar do governo determinado elemento que no conceito dos pregadores do golpe, são considerados incompatíveis com o regime da democracia, e assim dizem eles: O golpe não é contra o regime, pelo contrário, é a favor do regime. O fim justificaria o meio.

Eu vejo em tudo isto, meus amigos. Um grande equívoco. Tenho o hábito de ser o mais claro possível e não dizer uma coisa em lugar de outra coisa. Sejamos, portanto, claros, claros como devem ser os juristas. Se o golpe é a solução imprescindível, então a conclusão é esta: O regime vigorante é imprestável. Se o regime não tem os meios de levar aos postos de mando os homens que devem ir aos postos de mando, se o golpe é imprescindível, então, a conclusão é esta: O regime vigorante é imprestável. Quero lembrar que há no nosso tempo, na época em que vivemos, não só no Brasil, mas no mundo, no mundo ligado ao Brasil, no mundo na nossa civilização, existe atualmente um mal, um vício que é o seguinte: sobre todos os assuntos somos levados a aceitar duas verdades diferentes: Uma verdade que nós sabemos ser verdadeira e a outra que não é a verdadeira mas funciona como se fosse verdadeira. E, curioso observar esse fenômeno que é típico da nossa época. Há duas verdades em todos os assuntos: uma verdade verdadeira e uma verdade falsa, que funciona como se fosse a verdade verdadeira. Reparem os senhores que realmente isto sucede. Mesmo no campo moral vamos sendo levados a designar os fatos com nomes que não exprimem realmente esses fatos. Quantas vezes no mundo moderno a mais flagrante despudorada desonestidade é chamada esperteza, habilidade. Este vício das duas verdades se projeta no campo político. Nós sentimos, muitas vezes dissemos e escrevemos, por exemplo, que o Parlamento Nacional representa a nação. Ora, nós sentimos que isto não é verdade. O Parlamento Nacional, só por ficção é que representa a nação.

O fato incontestável é que a ideia da revolução está cada vez mais fascinando as consciências. Nós sentimos que, apesar de tudo, a ideia revolucionária tem cada vez maior penetração. Porque motivo? Tenhamos coragem de responder verdadeiramente a esta pergunta. Todos, todos os homens conscientes têm a sensação de que alguma coisa está errada. Mas nós que temos o hábito de meditar sobre os problemas nacionais, nós não somente sentimos mas sabemos que o mal que nos infelicita não está em um, em dois ou em três determinados homens. O vício é mais profundo porque é um vício do próprio regime. Ainda hoje, abrindo os jornais, li a declaração do Presidente da República. Disse o Senhor Café Filho que é impossível governar com esta Constituição. E que a Constituição Brasileira é calcada em constituições alienígenas, em fórmulas que não fórmulas brasileiras. Ela não se inspirou na realidade profunda de nossa terra. Durante todo o Império, buscamos nós brasileiros fazer como os ingleses. Durante toda a República, buscamos nós brasileiros fazer, como os americanos. Assim como Rui Barbosa contra a República Americana de Braz e Teixeira Mendes contra a Política positiva de Augusto Comte, tenho a convicção de que é chegada a hora de lermos o grande livro da realidade nacional. Ao dizer-vos isso, meus amigos, sinto reatar-se em mim o ideal revolucionário, mas exatamente porque sou um revolucionário sou contra os golpes. O golpe é um ideal bem pequeno, é um ideal insuficiente para uma alma de revolucionário. Quarteladas, ‘’complots’’, maquinações, agitações, desastres, diante de tudo isto um verdadeiro revolucionário queda-se gelado. O golpe agita a nação e ao mesmo tempo paralisa as fontes produtoras, sem nenhum alto objetivo. O golpe ocasiona muitas vezes derramamento de sangue, sem a justificação de um grande ideal. Com o golpe, substituem-se homens por homens, partidos por partidos, só isso. E a nação é transformada em cobaia de experiências oportunistas. Revolução no grande sentido é mais do que isto. A revolução no seu autêntico sentido é um movimento que leva desfraldada a bandeira de uma doutrina. Revolução antes de ser um movimento armado, antes de ser um movimento de quartéis, antes de ser um movimento da rua, revolução é um movimento de espírito, um movimento de cultura. Revolução não é apenas destruição. Revolução é muito mais do que destruição. Revolução não é a derrubada de um governo. Revolução é antes de tudo um movimento de criação, de edificação. Uma revolução não pode ser uma experiência para ver no que dá. A revolução autêntica é uma cultura em marcha, como foi a Revolução Francesa, a Revolução Americana, a Revolução Russa. Que nos oferecem os pregadores de golpe no Brasil moderno? Muitos discursos, muitas palavras, muitos chavões, muitos ‘’slogans’’, o vácuo, nenhuma ideia nova que justifique uma revolução, nenhuma ideia essencialmente brasileira e nossa capaz de levantar a nação inteira. A revolução, muitos não a compreendem assim, mas a revolução há de ser sempre um movimento de mentalidades, de consciências, um movimento contra mentalidades crepusculares, um movimento contra ideias mortas, um movimento contra instituições devastas e um movimento contra aqueles que só sabem acompanhar a onda e de conformam com todas as monotonias. E revolução há de ser um movimento a favor de uma nova cultura, de um novo conceito de política, de uma nova estrutura de estado. Ela porque, meus amigos, a revolução há de ser sempre um movimento de mocidade, de mocidade de espírito. Qualquer coisa me diz que a revolução brasileira sairá desta Escola. Aqui redigiremos a Constituição do Brasil autêntica. (palmas prolongadas) Em nossos altares estão Alberto Torres, Oliveira Viana, Euclides da Cunha e outros nomes tutelares da nação. Eu confio nesta Escola, confio nesta Escola que é uma escola de cultura, de poesia e de sonhos. Sobre estas vetustas Areadas germina a primavera do Brasil. (palmas prolongadas).